Os avanços tecnológicos estão a revolucionar diversos setores, incluindo o setor da saúde. A saúde digital tem permitido o desenvolvimento de uma vasta gama de possibilidades para melhorar a qualidade dos cuidados de saúde de diversas formas, tais como promover o acesso aos cuidados médicos, acelerar o processo de diagnóstico e tomada de decisão, melhorar os indicadores de saúde dos pacientes e reduzir custos.
Os dados estão a transformar os cuidados de saúde, modificando a forma como os serviços médicos são prestados e geridos. A convergência de big data, inteligência artificial, wearables e analítica avançada está a transformar o paradigma tradicional reativo para um sistema de saúde mais proativo, personalizado e preditivo. Este artigo foca nas diferentes formas como os dados e as tecnologias emergentes estão a transformar os
cuidados de saúde, incluindo a perspectiva portuguesa sobre a digitalização dos cuidados de saúde.
Big data
Nas últimas décadas, a recolha e armazenamento de dados tem sido uma prática comum na área da saúde, juntamente com o crescente interesse na utilização secundária de grandes quantidades de dados – big data – para melhoria dos cuidados clínicos e saúde pública. A Gartner propôs a definição “3V” de Big Data: “Big Data são ativos de informação de volume, alta velocidade e alta variedade que requerem formas inovadoras e económicas de processamento de informação para uma melhor percepção e tomada de decisão” (Beyer et al).
Recolhidos principalmente a partir de registos eletrônicos de saúde, registos de seguros de saúde, dados de farmácias, dados de dispositivos médicos e sensores, e investigação biomédica, os dados clínicos e dados do mundo real ajudam os profissionais de saúde a compreender melhor as populações de doentes, perceber a eficácia dos tratamentos, e apoiar decisões regulamentares, levando a:
• Medicina personalizada: Com base em dados genómicos, histórico médico, biomarcadores, informações sobre estilo de vida e métricas de saúde do paciente, os cuidados de saúde passarão a ser personalizados e a medicação será adaptada às necessidades individuais, aumentando a eficácia do tratamento, reduzindo os efeitos secundários e antecipando a resposta aos fármacos.
• Gestão da saúde da população: A agregação e análise de dados clínicos permite aos prestadores de cuidados identificar as populações com maior risco de contrair determinadas doenças e criar intervenções preventivas de saúde pública.
• Cuidados de saúde baseados no valor: Ao analisar os indicadores clínicos dos pacientes e os custos, os prestadores de cuidados e as seguradoras podem avaliar os resultados de saúde e concentrar-se na prestação de cuidados de qualidade que reduzam as readmissões hospitalares e promovam saúde a longo prazo, contribuindo para uma perspetiva de cuidados baseados no valor.
Inteligência artificial
A recolha consistente de dados clínicos possibilita a utilização de tecnologias que sistematizam não só a quantidade de informação de saúde recolhida e armazenada eletronicamente, mas também o detalhe das conclusões que podem ser retiradas destes dados (Adamson et al.).
Ao identificar padrões e tendências de grandes conjuntos de dados complexos, a inteligência artificial (IA) tem a capacidade de aumentar a precisão e rapidez do diagnóstico de doenças e do desenvolvimento de fármacos, otimizar os fluxos de trabalho hospitalares e a gestão dos sistemas de saúde, e reforçar vigilância de doenças e resposta a surtos.
A utilização de modelos de predição de IA tem uma vasta utilização na área da saúde, seja para a identificação de doentes com elevado risco de readmissão e desenvolvimento de intervenções direcionadas para reduzir as readmissões (Mohanty et al.), previsão das taxas de admissão de doentes e tempo de permanência no hospital através da melhoria do planeamento da capacidade e alocação de recursos (Davis et al.), previsão das taxas de ocupação e procura de camas hospitalares (Tello et al.), bem como previsão e diagnóstico de diversas doenças, como cardiomiopatia (Xia et al.), diabetes (Lu et al.) ou Alzheimer (Uysal e Ozturk). Em última análise, a IA pode ter um enorme impacto em:
• Cuidados preditivos e preventivos: Ao analisar padrões nos dados dos doentes, os algoritmos podem identificar sinais de alerta precoce em doenças crónicas, permitindo intervenções e medidas preventivas, reduzindo os custos de saúde e melhorando os resultados para os pacientes.
• Sistemas de apoio à decisão clínica: As ferramentas baseadas em dados podem fornecer aos médicos sistemas de apoio à decisão em tempo real com base em casos e modelos preditivos. Estas ferramentas podem ajudar os médicos a tomar decisões mais informadas, a reduzir os erros de diagnóstico e a escolher as opções de tratamento mais eficazes.
• Análise de dados não estruturados: Os dados recolhidos podem ser estruturados e não estruturados, uma vez que a integração de dados armazenados em ambos os formatos pode acrescentar um valor significativo aos cuidados de saúde. O Processamento de Linguagem Natural pode extrair informações significativas de dados de saúde não estruturados, como notas médicas, relatórios clínicos, discurso e artigos de investigação, ajudando a automatizar a introdução de dados, descobrir padrões nas narrativas dos doentes e melhorar a qualidade da documentação nos sistemas de saúde.
Telemedicina e monitorização remota
A pandemia de COVID-19 foi um catalisador para o desenvolvimento e adoção de uma vasta gama de tecnologias de telessaúde pelos sistemas de saúde, como instalações virtuais e plataformas de teleassistência (Bouabida et al ). A Internet das Coisas (IoT) e os wearables têm desempenhado um papel significativo na expansão da telessaúde, uma vez que os dados recolhidos a partir destas redes de dispositivos desempenham um papel fundamental ao permitir a monitorização remota de pacientes e o cuidado remoto. Estes dispositivos podem recolher métricas como ritmo cardíaco, pressão arterial, níveis de glucose, níveis de atividade e padrões de sono, que podem ser transmitidos automaticamente aos profissionais de saúde. Assim, a telemedicina e os wearables permitem a monitorização contínua e em tempo real dos doentes, tanto para cuidados de saúde preventivos como para gestão de doenças crónicas, reduzindo as admissões hospitalares e possibilitando a prestação de cuidados a populações remotas. Além disso, a telemedicina e os wearables podem melhorar significativamente:
• Envolvimento dos doentes: Estas tecnologias permitem que os doentes assumam um papel mais ativo na gestão dos seus cuidados de saúde e monitorizem e acompanhem o seu progresso, promovendo o autocuidado e a adesão aos planos de tratamento.
• Ensaios clínicos baseados em dados: Ao agregar dados do mundo real, wearables e resultados reportados pelos doentes e analisar dados de populações maiores e mais diversas, a IA pode ajudar a identificar os doentes elegíveis para ensaios clínicos, a otimizar os projetos de ensaios e a gerar informações sobre eficácia e segurança dos fármacos, criando ensaios clínicos virtuais ou híbridos que serão mais rápidos, mais baratos e mais inclusivos.
Interoperabilidade e segurança de dados
Os dados de saúde são desafiantes. Por um lado, são sensíveis e requerem um alto nível de privacidade e segurança de modo a serem partilhados. Por outro lado, a incapacidade de acesso aos dados de saúde pode causar danos substanciais para os indivíduos e populações. Dado o aumento da esperança de vida, a partilha de dados de saúde será fundamental. À medida que os sistemas de saúde geram mais dados, há uma necessidade crescente de interoperabilidade entre os diferentes sistemas de tecnologias de informação de saúde. A interoperabilidade permite aos prestadores de cuidados de saúde em hospitais, clínicas e laboratórios aceder aos dados dos doentes a partir de múltiplas fontes.
Alguns padrões de interoperabilidade, como o Fast Healthcare Interoperability Resources (HL7 FHIR) e o Electronic health information exchange (HIE), estão a possibilitar a troca de dados de saúde entre diferentes sistemas, permitindo uma melhor coordenação dos cuidados e reduzindo as redundâncias nos exames médicos ou tratamentos.
Para além disso, tecnologias como o blockchain estão a revolucionar a forma como os dados de saúde são armazenados e partilhados, garantindo que as informações dos doentes se encontram seguras, imutáveis e acessíveis apenas por partes autorizadas, eliminando problemas relacionados com fraude e falta de precisão nos registos de saúde, ao mesmo tempo que oferece mais controlo aos pacientes para conceder acesso aos seus registos.
Por outro lado, garantir a conformidade com regulamentos como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) é fundamental para proteger os dados dos doentes e manter a confiança. À medida que crescem as preocupações com a privacidade, os dados sintéticos estão a ser utilizados para simular dados de pacientes do mundo real, sem expor informações confidenciais. A IA pode gerar conjuntos de dados sintéticos que refletem comportamentos reais dos doentes para fins de investigação e treino de modelos, permitindo o desenvolvimento de novos tratamentos e estratégias de saúde pública sem expor informações confidenciais dos pacientes, garantindo o cumprimento das leis de
privacidade.
Implicações da inteligência de dados na gestão da saúde
As implicações da inteligência de dados na gestão da saúde representam um avanço crítico que aproveita big data, IA e a análise de dados para melhorar a tomada de decisão, os cuidados prestados aos doentes e a eficiência operacional. Isto está subjacente à crescente dependência dos sistemas de saúde contemporâneos na gestão eficaz de dados para melhorar o desempenho hospitalar, facilitar a análise em tempo real e garantir a implementação ética das tecnologias de IA.
Estudos recentes têm descrito o papel decisivo que a governação, a integração e a qualidade dos dados desempenham na transformação das operações de saúde, o que impacta diretamente os resultados dos cuidados, a segurança do doente e as possibilidades de investigação (Tang et al.). A capacidade de planear com antecedência através de análises preditivas permite aos hospitais utilizar esta ferramenta para reduzir os tempos de espera, agendar proativamente consultas de seguimento, identificar áreas de ineficiência e monitorizar a alocação de recursos humanos e logísticos. Esta capacidade depende fortemente de dois fatores principais que não podem ser dissociados: (i) uma recolha abrangente de dados, incluindo registos de admissão de doentes, informações demográficas e sazonais, e mesmo indicadores externos, como dados de saúde pública e eventos locais, e (ii) elevada qualidade e precisão dos dados, principalmente dados com atualização em tempo real, que se tornam cruciais em cenários de emergência como ondas pandémicas (Klein et al.).
Digitalização dos cuidados de saúde: a perspectiva portuguesa
Portugal tem vindo a criar condições para acelerar a digitalização do país através do plano de ação para a transição digital, que compreende um pilar relacionado com a digitalização dos serviços públicos e o sistema nacional de saúde, incluindo a adoção de uma abordagem baseada em dados no ambiente hospitalar, desde as atividades clínicas centrais até às operações críticas de gestão.
No âmbito da Estratégia Nacional para o Ecossistema de Informação de Saúde – ENESIS 2020-2022, a Unidade de Analítica Avançada e Inteligência dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) lançou a estratégia de dados para a próxima geração do Serviço
Nacional de Saúde (SNS) (Pinto et al.). Contém a visão, áreas chave e princípios de utilização secundária de dados, análise avançada e inteligência artificial para melhorar a saúde da população portuguesa e apela a uma abordagem abrangente para reforçar a transformação digital do SNS através de um forte modelo de governação dos dados e da inclusão de sistemas suportados por IA para acrescentar valor.
Mais recentemente, Portugal destacou-se como o segundo país europeu que mais aumentou a sua maturidade em termos de acesso a dados digitais de saúde no relatório ‘Década Digital 2024: Estudo de Indicadores de Saúde Digital’ (Winkel et al.). O estudo avaliou os progressos realizados no sentido do principal objetivo da Década Digital de garantir que 100% dos cidadãos da UE têm acesso ao seu registo de saúde eletrónico até 2030 e abrangeu quatro áreas principais: (i) serviços de acesso eletrónico para os cidadãos, (ii) categorias de dados cuidados de saúde, (iii) tecnologia e cobertura, e (iv) oportunidades de acesso. Em termos da capacidade dos cidadãos acederem ao seu registo de saúde
eletrónico, Portugal alcançou uma pontuação de 100%, ficando em 5º lugar no indicador de tecnologia e cobertura de acesso. Nos indicadores de disponibilidade de categorias de dados eletrônicos de saúde e de oportunidade de acesso ao registo eletrónico de saúde por grupos específicos como crianças, idosos ou cidadãos com deficiência, Portugal registou uma melhoria de 17% e 38%, respetivamente, face a 2022.
Estes resultados são promissores e revelam a melhoria contínua da saúde digital ao longo dos anos. A missão do Data CoLAB está alinhada com este propósito de capacitar o setor da saúde com as competências necessárias para alcançar uma transformação digital sustentável, e de contribuir para a digitalização do setor desenvolvendo soluções inovadoras de aquisição de dados, interoperabilidade, inteligência e visualização de dados e segurança de dados.
Conclusão
Em síntese, os dados têm a capacidade de transformar profundamente os cuidados de saúde, tornando-os mais preditivos, personalizados, proativos e eficientes. Desde a otimização dos fluxos clínicos ao aumento do envolvimento dos doentes e à melhoria dos indicadores de saúde, os dados e as tecnologias emergentes estão a caminho de se tornarem a chave na remodelação do panorama da saúde.
Referências
Beyer, M., & Laney, D. (2012). The importance of ‘Big Data’: A definition. Gartner report, 1–9.
Adamson, B., et al. (2023). Approach to machine learning for extraction of real-world data variables from electronic health records. Frontiers in Pharmacology, 14, 1180962.
Mohanty, S. D., et al. (2022). Machine learning for predicting readmission risk among the frail: Explainable AI for healthcare. Patterns, 3(1).
Davis, S., et al. (2022). Effective hospital readmission prediction models using machine-learned features. BMC Health Services Research, 22(1), 1415.
Tello, M., et al. (2022). Machine learning-based forecast for the prediction of inpatient bed demand. BMC Medical Informatics and Decision Making, 22(1), 55.
Xia, C., et al. (2019). A multi-modality network for cardiomyopathy death risk prediction with CMR images and clinical information. In D. Shen et al. (Eds.), Medical Image Computing and Computer-Assisted Intervention – MICCAI 2019 (pp. 577–585). Springer International Publishing.
Lu, H., et al. (2022). A patient network-based machine learning model for disease prediction: The case of type 2 diabetes mellitus. Applied Intelligence, 52(3), 2411–2422.
Uysal, G., & Ozturk, M. (2020). Hippocampal atrophy-based Alzheimer’s disease diagnosis via machine learning methods. Journal of Neuroscience Methods, 337, 108669.
Bouabida, K., Lebouché, B., & Pomey, M. P. (2022). Telehealth and COVID-19 pandemic: An overview of the telehealth use, advantages, challenges, and opportunities during COVID-19 pandemic. Healthcare (Basel), 10(11), 2293.
Tang, J., et al. (2020). Pharmacist and data-driven quality improvement in primary care (PDQIP): A qualitative study of anticipated implementation factors informed by the Theoretical Domains Framework. BMJ Open, 10(2), e033574.
Klein, B., et al. (2023). Forecasting hospital-level COVID-19 admissions using real-time mobility data. Communications Medicine, 3(1), 1–9.
Pinto, C. S., et al. (2019). From big data to smart health: Putting data to work for the public’s health.
European Commission: Directorate-General for Communications Networks, Content and Technology, Page, M., Winkel, R., Behrooz, A., & Bussink, R. (2024). 2024 digital decade eHealth indicator study – Final report. Publications Office of the European Union
Bárbara Patrício
Program Manager – Health and Pharma